terça-feira, 23 de dezembro de 2014


Natal, Natal... Bimbalham os Sinos

Papai Noel só existe nos Shoppings Centers



Uma vez, o grande Rubem Braga fez uma lista dos lugares-comuns jornalísticos que justificariam demissões sumárias. O sujeito que escrevesse que o "trem ficara reduzido a um monte de ferros retorcidos" ou que o "incêndio era o ‘belo-horrível’" estava despedido. Havia outras banalidades imperdoáveis, como iniciar um parágrafo com a expressão: "Tirante, é óbvio, contradições secundárias..." - isso daria bilhete azul, "passaralho" ou cartão vermelho na hora. Desta lista constava também "a data magna da cristandade" e a saudação de fim de ano "Natal Natal, bimbalham os sinos!"... Pois é, nas ruas engarrafadas, vemos que se aproxima a data magna da cristandade, com suas pompas e traumas. E como eu vou sair de férias ("ah, que alívio!" - rosnam meus inimigos...), bimbalho meu sino com antecedência.

O Natal perdeu a delicadeza antiga. Não temos mais chaminés nem ceias transcendentais. Em vez do saco de presentes, temos as calamidades coloridas dos shoppings centers. Hoje, Papai Noel vem com as renas de um Polo Norte que está derretendo pelo efeito estufa. Hoje, no presépio de Belém, perto da manjedoura do menino Jesus, explodem os homens-bomba berrando: "Feliz Natal, cães infiéis!" Não sei por que, mas sempre fiquei triste naquelas noites do passado. Durante as ceias, eu via, do meu canto de menino melancólico, as frágeis ligações entre parentes, entre tios e primos, antipatias disfarçadas por abraços frios e votos de felicidades. O destino das famílias ficava evidente no Natal do passado – os pobres se conformavam com o tosco prazer dos presentes baratos e os ricos se obrigavam a ser felizes a qualquer preço. Egoístas o ano inteiro, viviam a alegria compulsiva de gargalhadas solidárias e beijos molhados de vinho, terminando nas tristes saídas da madrugada, com crianças chorando e presentes carregados por pais de porre, aos berros de "Feliz Natal". Eu olhava aquelas famílias viajando no tempo como um cortejo trôpego, eu via a solidão de primos, de tias malucas, dos avós já calados e ausentes, do eterno presunto caramelado e do peru com apito. Hoje, todos reclamam da chateação do Natal, vergados sob embrulhos, nas lojas e no trânsito travado. Chovem queixas, mas ninguém escapa do comércio do carinho obrigatório: "Ah... porque no Natal aumenta o sentimento de culpa, a gente sofre com traumas infantis... O Natal é uma festa influenciada pelos norte-americanos, com Papai Noel enchendo o saco em vez de esvaziá-lo. No Natal a gente engorda muito, se enchendo de carboidratos..." Todos reclamam, mas, na noite feliz, noite de paz, olham com ternura as bolinhas douradas da árvore, comem seus perus, dizem que "adoraram o presentinho, coisa pouca, não leva a mal, mas essa caixa de sabonetes naturais é legal, adorei a água de colônia..."  Papai Noel também sempre me intrigou. Quem era aquele sujeito que aparecia no fim do ano, nas lojas, no rádio, na TV? Sempre desconfiei daquele "pai bondoso", com seu hô-hô-hô cheio de perdão. Nessa época, alguns malucos do final do Estado Novo lançaram uma campanha nacionalista no rádio para substituir o Papai Noel por outro símbolo: o "Vovô Índio" - um velho silvícola seminu, com peninha na cabeça, que traria presentes para os curumins de verde e amarelo. Foi um fracasso total, pois o cinema norte-americano já mandava em nossas cabeças, com o Bing Crosby cantando "White Christmas" sem parar. Papai Noel, de origem norueguesa (sim... St. Nicolas, que deu em Santa Claus em inglês) foi invencível. Todos o amavam. Mas, para mim, Papai Noel era assustador. Já escrevi uma vez sobre esse pânico infantil, provocado por um estratagema de meu pai "biológico", que usava o Natal para me dar lições de moral. Papai Noel me trazia presentes, sim, mas sempre acompanhados de uma carta repleta de repreensões dolorosas: "Por que você desobedeceu sua mãe e matou a aula de piano? Por que você bateu na sua irmã com o espanador? Se fizer isso de novo, ano que vem não ganha nada!..." Cada presente me dava mais sentimento de culpa. Papai Noel foi meu superego de barbas brancas. Daí, conclui que ele gostava de todo mundo, menos de mim. Por isso, fui o primeiro de minha turminha a denunciar que Papai Noel era uma fraude. "Papai Noel não existe!" - foi meu grito revolucionário. "Existe sim! Ele me deu um velocípede!" - bradavam os meninos, obstinados em sua fé. "Ah, é? Então, fica acordado para ver se não é teu pai botando os presentes na árvore!" Recorri a meu avô, conselheiro e aliado, e ele apoiou meu agnosticismo: "Não existe não... Você não é mais neném para acreditar nessas bobagens..." E não parei mais. Entrei de sola na lenda da cegonha e do bebê que "papai do céu mandou"... "Vocês pensam o quê?" - eu bradava - "As mães de vocês ficam nuas e o pai de vocês bota uma coisa dentro da barriga delas pelo umbigo...!" "A minha mãe, não!" - berravam os jovens édipos, partindo para a porrada de rua, entre socos e "gravatas". Daí, para descrer de Deus foi um pulo, para escândalo dos colegas do colégio jesuíta. "Deus é bom, padre?" "Sim, infinitamente bom..." "Ele sabe de tudo?" "Sim..." - respondiam os padres desconfiados. "Então, por que ele cria um cara que depois vai para o inferno?" Até hoje ninguém me explicou isso. E assim fui, até começar o ódio ao "imperialismo norte-americano", nos anos 60.
E hoje, com o futuro cada vez mais ralo, tenho saudades da precariedade de nossa vida antiga, da ingenuidade dos comportamentos, de um mundo com menos gente louca e má.  "Ah! Você por acaso quer a volta do atraso?" - dirão alguns. Não; mas sonho com uma vida delicada que sumiu, dos lugares-comuns, dos chorinhos e chorões, de tudo que era baldio, dos valores toscos da classe média. E quando chega o Natal, tenho a grande nostalgia das tristes ceias de minhas tias, sinto ainda o gosto dos panetones e rabanadas transcendentais do meu passado.

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