SOBRE POLÍTICA E JARDINAGEM
Escrevo para você, jovem, para seduzi-lo à vocação política.
Talvez haja um jardineiro adormecido dentro de você. De todas as vocações, a
política é a mais nobre. Vocação, do latim “vocare”, quer dizer “chamado”.
Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um “fazer”. No lugar
desse “fazer” o vocacionado quer “fazer amor” com o mundo. Psicologia de
amante: faria, mesmo que não ganhasse nada. “Política” vem de “polis”, cidade. A cidade era, para os gregos,
um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da
felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação
política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.
Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam
com cidades; sonhavam com jardins. Quem mora no deserto sonha com oásis. Deus
não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu
“o que é política?”, ele nos responderia: “A arte da jardinagem aplicada às
coisas públicas”.
O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para
todos. Seu amor é tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia
plantar para si mesmo. De que vale um pequeno jardim se a sua volta está o
deserto? É preciso que o deserto inteiro se transforme em jardim.
Amo a minha vocação, que é escrever. Literatura é uma vocação bela
e fraca. O escritor tem amor, mas não tem poder. Mas o político tem. Um
político por vocação é um poeta forte: ele tem o poder de transformar poemas
sobre jardins em jardins de verdade.
A vocação política é transformar sonhos em realidade. É uma
vocação tão feliz que Platão sugeriu que os políticos não precisam possuir
nada: bastar-lhes-ia o grande jardim para todos. Seria indigno que o jardineiro
tivesse um espaço privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos.
Conheci e conheço muitos políticos por vocação. Sua vida foi e continua a ser
um motivo de esperança.
Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a
felicidade na própria ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O
prazer está no ganho que dela se deriva. O homem movido pela vocação é um
amante. Faz amor com a amada pela alegria de fazer amor. O profissional não ama
a mulher. Ele ama o dinheiro que recebe dela. É um gigolô.
Todas as vocações podem ser transformadas em profissões. O jardineiro
por vocação ama o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de
todos para construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao
seu redor aumentem o deserto e o sofrimento. Assim é a política. São muitos os
políticos profissionais. Posso, então, enunciar minha segunda tese: de todas as
profissões, a política é a mais vil. O que explica o desencanto total do povo,
em relação à política. Guimarães Rosa, questionado por Günter Lorenz se ele se
considerava político, respondeu: “Eu jamais poderia ser político com toda essa
charlatanice da realidade. Ao contrário dos ‘legítimos’ políticos, acredito no
homem e lhe desejo um futuro. O político pensa apenas em minutos. Sou escritor
e penso em eternidades. Eu penso na ressurreição do homem”. Quem pensa em
minutos não tem paciência para plantar árvores. Uma árvore leva muitos anos
para crescer. É mais lucrativo cortá-las.
Nosso futuro depende dessa luta entre políticos por vocação e
políticos por profissão. O triste é que muitos que sentem o chamado da política
não têm coragem de atendê-lo, por medo da vergonha de ser confundidos com
gigolôs e de ter de conviver com gigolôs.
Escrevo para você, jovem, para seduzi-lo à vocação política.
Talvez haja um jardineiro adormecido dentro de você. A escuta da vocação é
difícil, porque ela é perturbada pela gritaria das escolhas esperadas, normais,
medicina, engenharia, computação, direito, ciência. Todas elas são legítimas,
se for vocação. Mas todas elas são afunilantes: vai colocá-lo num pequeno canto
do jardim, muito distante do lugar onde o destino do jardim é decidido. Não seria
muito mais fascinante participar dos destinos do jardim?
Acabamos de celebrar os 500 anos do Descobrimento do Brasil. Os
descobridores, ao chegar, não encontraram um jardim. Encontraram uma selva. Selva não é jardim. Selvas são cruéis e
insensíveis, indiferentes ao sofrimento e à morte. Uma selva é uma parte da
natureza ainda não tocada pela mão do homem. Aquela selva poderia ter sido
transformada num jardim. Não foi. Os que sobre ela agiram não eram
jardineiros, mas lenhadores e madeireiros. Foi assim que a selva, que
poderia ter se tornado jardim, para a felicidade de todos, foi sendo
transformada em desertos salpicados de luxuriantes jardins privados onde poucos
encontram vida e prazer.
Há descobrimentos de origens. Mais belos são os descobrimentos de
destinos. Talvez, então, se os políticos por vocação se apossar do jardim,
poderemos começar a traçar um novo destino. Então, em vez de desertos e jardins
privados, teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o
amor e a paciência de plantar árvores em cuja sombra nunca se assentaria.
Rubem Alves.
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