quinta-feira, 25 de outubro de 2012



Filho da floresta, água e madeira


 Filho da floresta,
 água e madeira
 Vão na luz dos meus olhos,
 e explicam este jeito meu de amar as estrelas
 e de carregar nos ombros a esperança.

 Um lanho injusto, lama na madeira,
 a água forte de infância chega e lava.

 Me fiz gente no meio de madeira,
 as achas encharcadas, lenha verde,
 minha mãe reclamava da fumaça.

 Na verdade abri os olhos vendo madeira,
 O belo madeirame de itaúba
 da casa do meu avô no Bom Socorro,
 Onde meu pai nasceu
 e onde eu também nasci.

 Fui o último a ver a casa erguida ainda,
 Íntegros os esteios se inclinavam,
 morada de morcegos e cupins.

 Até que desabada pelas águas de muitas cheias,
 A casa se afogou
 num silêncio de limo, folhas, telhas.

 Mas a casa só morreu definitivamente
 quando ruíram os esteios da memória
 de meu pai,
 neste verão dos seus noventa anos.

 Durante mais de meio século,
 Sem voltar ao lugar onde nasceu,
 a casa permaneceu erguida em sua lembrança,
 As janelas abertas para as manhãs
 do Paraná do Ramos,
 a escada de pau-d’arco
 que ele continuava a descer
 para pisar o capim orvalhado
 e caminhar correndo
 pelo campo geral coberto de mungubeiras
 até a beira florida do Lago Grande
 onde as mãos adolescentes aprendiam
 os segredos dos úberes das vacas.

 Para onde ia, meu pai levava a casa
 e levava a rede armada entre acariquaras,
 Onde, embalados pela surdina dos carapanãs,
 Ele e minha mãe se abraçavam,
 cobertos por um céu insuportavelmente
 estrelado.

 Uma noite, nós dois sozinhos,
 Num silêncio hoje quase impossível
 nos modernos frangalhos de Manaus,
 meu pai me perguntou se eu me lembrava
 de um barulho no mato que ele ouviu
 de manhãzinha clara ele chegando
 no Bom Socorro aceso na memória,
 depois de muito remo e tantas águas.

 Nada lhe respondi. Fiquei ouvindo
 meu pai avançar entre as mangueiras
 na direção daquele baque, aquele
 baque seco de ferro, aquele canto
 de ferro na madeira — era a tua mãe,
 os cabelos no sol, era a Maria,
 O machado brandindo e abrindo em achas
 um pau mulato azul, duro de bronze,
 Batida pelo vento, ela sozinha
 no meio da floresta.

 Todas essas coisas ressurgiam
 e de repente lhe sumiam na memória,
 Enquanto a casa ruína se fazia
 no abandono voraz, capim-agulha,
 e o antigo cacaual desenganado
 dava seu fruto ao grito dos macacos
 e aos papagaios pândegas de sol.

 Enquanto minha avó Safira, solitária,
 Última habitante real da casa,
 acordava de madrugada para esperar
 uma canoa que não chegaria nunca mais.

 Safira pedra das águas,
 Que me dava a bênção como
 Quem joga o anzol pra puxar
 um jaraqui na poronga,
 Sempre vestida de escuro
 a voz rouca disfarçando
 uma ternura de estrelas
 no amanhecer do Andirá.

 Filho da floresta, água e madeira,
 Voltei para ajudar na construção
 do morada futura. Raça de âmagos,
 Um dia chegarão as proas claras
 Para os verdes livrar da servidão

Thiago de Mello.

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