Como é
surpreendente seu olhar, meu mestre...
Por vezes, em minhas falas, conto aos meus ouvintes as
perguntas que a crianças fazem, perguntas que revelam a sua inteligência.
Porque a água fervendo amolece a cenoura e endurece o ovo? O que faz a terra
girar? Quem inventou as palavras? Entre as perguntas se encontra essa, feita
por uma criança: “Se na Arca de Noé estavam leões e tigres, por que eles não
comeram as ovelhas e os coelhos?” Uma participante ficou angustiada com essa
pergunta ímpia e, para esclarecer-me, enviou-me esse bilhete com a resposta
ortodoxa: “Os leões não comiam cabritinhos porque estavam durante aquele
período totalmente isentos de toda natureza selvagem que tinham. Durante os
dias e as noites na arca, Noé e a sua família estavam responsáveis de cuidar
dos animais, e Deus em sua sabedoria e amor fez com que todos os animais
ficaram como que “temporariamente transformados”. Rubens, pelo pouco que te
conheço, percebi que é muito inteligente…. Aconselho-te que procure uma Igreja
Adventista do Sétimo Dia, e perceberá experimentando tudo o que Deus ainda não
pode te mostrar. Beijos carinhosos.” Senti que sua pergunta era honesta e que
ela se preocupava com a salvação da minha alma. Mas eu estou mais com a criança
que com a resposta ortodoxa. E as perguntas me perturbam. Primeiro, acho
extraordinário que os filhos de Noé tivessem acreditado. Hoje, em virtude da
descrença, se eu anunciasse aos meus filhos que Deus me aparecera anunciando o
fim do mundo por um dilúvio e dizendo que tínhamos de fazer uma arca, é certo
que eles, com lágrimas nos olhos, me internariam numa instituição para velhos
senis. Não sei se a Arca de Noé tinha espaço suficiente para todos os bichos,
elefantes, girafas, ursos polares, avestruzes, hipopótamos, macacos, lagartos,
cavalos, porcos, galinhas. Há de se considerar também a dificuldade logística
de trazer todos esses animais e convencê-los a entrar na arca. Os ursos polares
teriam de ser trazidos do ártico. As lhamas, do Peru. Por favor, não me julguem
incrédulo. Tenho na minha sala de estar, num lugar de honra, uma magnífica tela
“A Arca de Noé”, o patriarca barbudo e seus filhos e a bicharada em fila. Com
certeza Noé falava a fala dos bichos e eles o obedeciam. Depois de todos lá
dentro a arca foi fechada. Imaginem as toneladas de ração que deveriam estar na
arca para que os bichos não morressem de fome! E as montanhas de fezes que não
podiam ser jogadas para fora, porque a arca estava trancada. O cheiro era
insuportável. A menos que Deus tivesse transformado o fedor em perfume. O
trabalho diário de Noé e seus filhos, cuidando dos bichos, deveria ser
gigantesco. Aí eu pergunto: Se os animais foram transformados temporariamente
por Deus em seres pacíficos, por que Deus, todo poderoso, não fez uma
transformação definitiva? Saídos da arca, os leões e tigres voltaram a ser
carnívoros? Os cabritinhos e coelhos tiveram tempo de fugir? E se Deus pode
fazer isso com os bichos, por que não o fez, definitivamente, com todos os
homens, evitando assim o artifício cruel de matar todos por afogamento?
Deixando de lado todas essas perguntas de uma razão ímpia, voltamos às delícias
românticas da imaginação…
Rubem Alves.